Entrevista
Dr. Pe. João Carlos Almeida
Padre Joãozinho, scj
Mestre em Teologia Sistemática pela FAJE – BH, doutor em Teologia pela Faculdade Assunção-SP, doutor em Educação pelas USP, e doutor em Espiritualidade pela Gregoriana (Roma). Professor de Pneumatologia na Faculdade Dehoniana, em Taubaté, SP, aonde exerce o cargo de Diretor Geral.
Por que o nome Renovação?
A Renovação Carismática Católica, como é conhecida no Brasil, pretende um retorno às fontes da fé cristã, conforme sugeriu o Concílio Vaticano II. Uma das características do cristianismo dos primórdios era uma intensa vida carismática. A presença e ação do Espírito Santo era vivida como estatuto fundamental da identidade cristã. O evento de Pentecostes foi configurativo para Igreja da era apostólica. Mesmo após três anos de catequese com Jesus e apesar de terem vivido a experiência da ressurreição, ainda lhes faltava um impulso interior que os levasse enfrentar todos os desafios, inclusive o do martírio. Esta experiência pentecostal é vivida de modo “renovado” na RCC. Esta é sua identidade principal: ser memória de pentecostes para a Igreja e para o mundo.
Podemos dizer que o movimento representa para os seguidores, um novo pentecostes?
Exatamente. Este foi um dos pedidos do Papa João XXIII ao anunciar a abertura do Concílio. Aliás, ele pediu que a Igreja vivesse um novo pentecostes e que fosse uma “Igreja dos pobres”. Poderíamos interpretar que as duas profecias do papa da bondade se realizaram. O novo pentecostes acontece intensamente nos nossos dias e é cuidadosamente cultivado na RCC. A Igreja dos pobres recebeu seu selo latino-americano a partir da Conferência de Medellín e, principalmente, de Puebla, em que ficou clássica a “opção preferencial pelos pobres”. As Comunidades Eclesiais de Base se tornaram um emblema desta cultura da solidariedade para com os pobres. A Teologia da Libertação procurou reler os velhos conteúdos da fé, a partir desta solidariedade com os excluídos. Temos aqui duas correntes carismáticas que formam as feições da Igreja no Brasil nestes últimos quarenta anos: a RCC e as CEBs. Ambas foram cuidadosamente reafirmadas na sua identidade na recente Conferência de Aparecida.
No decorrer da história o sr observa desvios de alguns setores da proposta original da RCC?
Assim como algumas imprecisões da Teologia da Libertação foram indicadas pela Santa Sé, na década de 1980 (e teólogos como Gustavo Gutiérrez tiveram a sabedoria de tornar seu discurso mais preciso), a RCC também tem seus limites. A CNBB procurou indicar alguns deles em um documento normativo de 1994. Os bispos, através do seu Conselho Permanente, reconhecem a identidade e eclesialidade da RCC. Reconhecem ainda os valores para a vida da Igreja como um todo. Reconhecem ainda a liberdade associativa garantida pelo Direito Canônico. Porém, pedem à RCC que também reconheça os valores dos outros grupos eclesiais. Se toda a Igreja aderisse ao estilo da RCC, certamente haveria um empobrecimento. A RCC é um modo de ser Igreja. Não posso concordar com o que já ouvi um pregador carismático dizer: que a RCC deverá se tornar o novo modo de a Igreja ser. Isto é presunção e não respeita a pluralidade típica do Corpo Místico de Cristo. Outro limite é a falta de mais teólogos na RCC. Talvez isso ajudasse a corrigir alguns desvios que acontecem em alguns lugares, como uma excessiva valorização do demônio ou a perda do foco central da fé colocando no centro carismas extraordinários ou “modas” passageiras, como é o caso do “Repouso no Espírito”. Em alguns lugares observa-se também a carência de formação litúrgica. Sobre a crítica que a RCC recebe com freqüência, de que não tem obras sociais, pessoalmente fiz uma pesquisa nacional e fiquei muito admirado com a quantidade de obras de promoção humana sob responsabilidade dos carismáticos. Hoje percebo um crescente envolvimento social dos grupos de oração e da RCC Nacional. O “Ministério de Promoção Humana” atua especificamente neste sentido.
O que se pode entender por ação do Espírito Santo na ótica da Renovação?
A RCC vive a experiência da presença e ação do Espírito na Igreja e em cada cristão. Esta presença não é teórica. Ela habilita por meio dos dons para anunciar a Palavra com poder. O anúncio do kerigma é uma das grandes linhas de ação da RCC. Os carismas dados pelo Espírito são como que ferramentas que tornam possível esta obra para além da pura eloqüência. O Espírito garante uma nova “unção”. Isto se verifica também na oração pessoal e comunitária. Por isso, lá onde a RCC preserva cuidadosamente sua identidade, crescem e se consolidam os Grupos de Oração.
Existe quem afirma que a RCC acaba exercendo uma espécie de monopólio do Espírito Santo. O que o sr. pensa a respeito??
Isto não é possível. O próprio Jesus afirma que o Espírito sopra onde quer (cf. Jo 3,8). Mas uma coisa é certa. Este mesmo Espírito distribui uma diversidade de dons na Igreja. Cada congregação religiosa, por exemplo, tem seu carisma próprio. Nem por isso os jesuítas detém o monopólio da obediência ao Santo Padre, nem os dehonianos são proprietários do Sagrado Coração de Jesus. As congregações, os movimentos e aí incluo a RCC, são memória de um aspecto particular. A Renovação nos lembra diariamente que somos uma Igreja que nasceu do fogo de pentecostes.
A dinâmica da RCC gira em torno dos dons carismáticos citados por São Paulo. Que finalidade tem esses dons?
Os carismas são dados pára a edificação da comunidade. A maioria deles são ordinários e geram a força necessário para que se exerçam os ministérios. Mas não podemos negar que existem alguns carismas também particulares, ou extraordinários. Não são vividos por todo batizado nem são essenciais à salvação. É essencial ter fé, esperança e caridade, que são virtudes teologais. Não é essencial orar ou profetizar em línguas ou praticar a “palavra de ciência” ou mesmo o dom do conselho. O dom de cura existe e é fartamente atestado por testemunhos, mas não é essencial à salvação. Sempre me pergunto se aqueles nove leprosos do evangelho que não voltaram para agradecer foram para o céu.
Mas, atualmente, eles estariam sendo usados como fim ou como meios?
São ferramentas. São garfo e faca. É possível que alguém os utilize como emblema, ou mesmo como finalidade. É absurdo, pois não se comem os garfos. Outra coisa é dizer que a prática dos carismas, ordinários e extraordinários, caracterizam a RCC. Isto é normal. Precisamos respeitar a identidade. Não se pode obrigado toda uma comunidade a rezar em línguas na missa das 9h. Também não se pode colocar regras ou limites para o Espírito. O grande teólogo Yves Congar chegou a falar de um “setor livre”; um espaço eclesial onde o Espírito age independente das decisões da Igreja. Ele não pede ao bispo para suscitar uma nova congregação. Depois a Igreja vai discernir, mas a ação do Espírito é “absolutamente” livre.
Qual tem sido a principal contribuição das comunidades de vida, entre elas, a Canção Nova, que é a maior delas?
As Novas Comunidades são um ramo particular dentro da ampla espiritualidade carismática. Bebem desta fonte, vivem esta dinâmica pentecostal, porém cada uma delas tem seu carisma próprio e suas estruturas. Além da Canção Nova gostaria de citar a Comunidade Shalom, de Fortaleza, que possuem toda uma caminhada de reconhecimento pontifício. Não existe um lugar totalmente apropriado para esta novidade que reúne em seu seio dos três estados de vida. Tudo isso é muito recente. Um dos nossos professores, Pe. Wagner Ferreira da Silva, formador geral da Canção Nova, recentemente defendeu seu doutorado em Roma sobre este tema. Como podemos observar o assunto é complexo e representa uma novidade do Espírito para a Igreja dos nossos dias. Estas comunidades têm ajudado muitos a reatarem seu elo de comunhão com a Igreja. Já não são católicos de qualquer jeito. São católicos praticantes. Há também uma grande contribuição no que se refere aos Meios de Comunicação Social. A Canção Nova é um exemplo vivo disso. Recentemente estive em Portugal e fiquei impressionado com o modo como as pessoas acompanham a Canção Nova por rádio, TV e Internet.
Como sr. analisa a amplitude que a RCC alcançou na Igreja do Brasil?
Diria que a “cultura pentecostal” estava na “Terra de Santa Cruz” como brasa sob as cinzas. A pentecostalidade é uma marca característica do catolicismo popular. Como exemplo, basta citar a Festa do Divino. Quem é este “Divino”? É o Espírito Santo. Quando todos imaginavam que o Catolicismo Popular estava morto ele ressurgiu das cinzas soba diversas formas pentecostais… e não somente católicas. Mas não vamos canonizar apressadamente a cultura pentecostal popular. Há muita superstição e sincretismo. É preciso evangelizar esta cultura popular.
É colocada a existência de um antagonismo entre RCC e Teologia da Libertação.Porque isso ocorre, se ambos cultivam a oração e o trabalho social?
Existe uma diferença entre as duas formas de ser Igreja. Não diria antagonismo. Algumas linhas jornalísticas que primam pela exagerada simplificação costumam insistir neste binômio RCC x TdL. Acho simples demais. Não dá conta da realidade, que é mais complexa.
Como o sr. avalia a resistência e até a oposição de alguns setores da Igreja à RCC?
É saudável para a RCC. Vejo que onde ela recebe críticas, cresce mais consistente. Onde a RCC se torna a referência principal para a Igreja local, alguns problemas logo começam a aparecer. Mas não há dúvida que é doloroso ouvir críticas injustas, infundadas e que são pronunciadas em tom de sarcasmo. Isto não é cristão.
O Papa João Paulo II incentivou movimentos da Igreja como a RCC. Com o fim do pontificado dele como sr. vê a postura de Bento XVI em relação à Renovação?
Tive a oportunidade de participar da recente visita de Bento XVI a Portugal. No dia 13 de maio ele falou brevemente aos bispos daquele país. Um breve trecho de sua fala pode nos dar a idéia clara de como o atual papa se colocar diante do papel dos movimentos na Igreja. Permito-me citar literalmente, pois estas palavras respondem com muita precisão a pergunta feita: “ Confesso-vos a agradável surpresa que tive ao contactar com os movimentos e novas comunidades eclesiais. Observando-os, tive a alegria e a graça de ver como, num momento de fadiga da Igreja, num momento em que se falava de ‘inverno da Igreja’, o Espírito Santo criava uma nova primavera, fazendo despertar nos jovens e adultos a alegria de serem cristãos, de viverem na Igreja que é o Corpo vivo de Cristo. Graças aos carismas, a radicalidade do Evangelho, o conteúdo objetivo da fé, o fluxo vivo da sua tradição comunicam-se persuasivamente e são acolhidos como experiência pessoal, como adesão da liberdade ao evento presente de Cristo. Condição necessária, naturalmente, é que estas novas realidades queiram viver na Igreja comum, embora com espaços de algum modo reservados para a sua vida, de maneira que esta se torne depois fecunda para todos os outros. Os portadores de um carisma particular devem sentir-se fundamentalmente responsáveis pela comunhão, pela fé comum da Igreja e devem submeter-se à guia dos Pastores. São estes que devem garantir a eclesialidade dos movimentos. Os Pastores não são apenas pessoas que ocupam um cargo, mas eles próprios são carismáticos, são responsáveis pela abertura da Igreja à ação do Espírito Santo. Nós, Bispos, no sacramento, somos ungidos pelo Espírito Santo e, por conseguinte, o sacramento garante-nos também a abertura aos seus dons. Assim, por um lado, devemos sentir a responsabilidade de aceitar estes impulsos que são dons para a Igreja e lhe dão nova vitalidade, mas, por outro, devemos também ajudar os movimentos a encontrarem a estrada justa, com correções feitas com compreensão – aquela compreensão espiritual e humana que sabe unir guia, gratidão e uma certa abertura e disponibilidade para aceitar aprender.”
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